terça-feira, 6 de julho de 2010

DUAS VEZES FREI BETTO

Tenho especial admiração pelo trabalho de Frei Betto, tanto por sua atuação política, quanto por sua prática religiosa - que no fundo acabam por ser a mesma coisa - já que eu mesma cresci dentro da Igreja Católica, em catecismos, Legiões de Maria, concursos de trechos da Bíblia, crisma e Grupo de Adolescente Nova Geração (creia, é verdade!!!)

A seguir dois textos desse grande homem sobre assuntos aparentemente distintos, mas tão próximos entre si e tão próximos de todos nós, por motivos que se evidenciarão no próprio texto.

O último texto, li no blog Futebol e Verbo, do jornalista Rodrigo Viana (vide lista de blogs)e o primeiro foi gentilmente encaminhado por George Matos, amigo que já andou por estas páginas.

Vamos, Frei Betto:



Futebol é arte e religião
Por Frei Betto

Sou um analfubola. Ou seja, nada entendo de futebol. Todas as vezes que me perguntam para qual time torço, fico tão constrangido como mineiro que não gosta de queijo.

Torci, na infância, pelo Fluminense, do Rio, e o América de Belo Horizonte. Influência materna. Mais tarde, fui atleticano por um detalhe geográfico: minha avó morava defronte do estádio, na Avenida Olegário Maciel, na capital mineira. E só. Sem contar a emoção de ter estado no Maracanã na noite de 14 de novembro de 1963 para assistir, misturado a 132 mil torcedores, àquele que é, por muitos, considerado o jogo dos jogos, a disputa entre Santos e Milan pelo Mundial Interclubes!

Hoje, me dou ao luxo de assistir, pela TV, às decisões de campeonato. Escolho para quem torcer. E não perco Copa do Mundo. Jogo do Brasil é missa obrigatória.

Eu disse missa? Sim, sem exagero. Porque, no Brasil, futebol é religião. E jogo, liturgia. O torcedor tem fé no seu time. Ainda que o time seja o lanterninha, o torcedor acredita piamente que dias melhores virão. Por isso, honra a camisa, vai ao estádio, mistura-se à multidão, grita, xinga, aplaude, chora de tristeza ou alegria, qual devoto que deposita todas as suas esperanças no santo de sua invocação.

O futebol nasceu na Inglaterra e virou arte no Brasil. Na verdade, virou balé. Aqui, tão importante quanto o gol são os dribles. Eles comprovam que nossos craques têm samba no pé e senso matemático na intuição. Observe a precisão de um passe de bola! No gramado, imenso palco ao ar livre, se desenha uma bela e estranha coreografia. Faça a experiência: desligue o som da TV e contemple os movime ntos dos jogadores quando trombam. É uma sinfonia de corpos alados. Fosse eu cineasta, editaria as cenas mais expressivas em câmera lenta e as adequaria a uma trilha sonora, de preferência valsa, ritmando o flutuar dos corpos sobre o verde do gramado.

O Brasil conta com 190 milhões de técnicos de futebol. Todos dão palpite. E ninguém se envergonha de fazê-lo, como se cada um de nós tivesse, nessa matéria, autoridade intrínseca. Pode-se discordar da opinião alheia. Ninguém, no entanto, ousa ridicularizá-la.
Pena que a violência esteja contaminando as torcidas. Outrora, elas anabolizavam, com sua vibração, o desempenho dos jogadores.

Agora, disputam no grito a prevalência sobre as torcidas adversárias. E, se perdem no jogo, insistem em ganhar no braço. A continuar assim, em breve o campo será ocupado, não pelo time, e sim, como uma grande arena, pelas torcidas. Voltaremos ao tempo dos gladiadores, agora em versão coletiva.

Quando ouço a estridência de vuvuzelas, como um enxame de abelhas a nos picar os tímpanos, penso que os torcedores já não prestam atenção ao jogo. Querem transferir o espetáculo do gramado para as arquibancadas. O ruído da torcida passa a ser mais importante que o desempenho dos jogadores.

Nossa autoestima como nação se apoia, sobretudo, na bola. Não ganhamos nenhum Prêmio Nobel; nosso único santo, frei Galvão, ainda é pouco conhecido; e nossa maior invenção – o avião – é questionada pelos usamericanos. Porém, somos o único país do mundo pentacampeão de futebol. Se a história dos países europeus do século 20 se delimita por duas guerras mundiais, a nossa é demarcada pelas Copas. E nossos heróis mais populares eram ou são exímios jogadores de futebol. A ponto de o mais completo, Pelé, merecer o título de rei.

A Copa é um acontecimento tão importante para o Brasil que, no dia do jogo da nossa seleção, se faz feriado. Se vencemos, a nação entra em euforia. Se perdemos, somos tomados por uma triste estupefação. Como se todos se perguntassem: como é possível o melhor não ter vencido?

Gilberto Freyre bem percebeu que na arte futebolística brasileira mesclam-se Dionísio e Apolo: a emoção e a dança dos dribles são dionisíacos; a força da disputa e a razão das técnicas, apolíneos.
Criança, eu escutava futebol no rádio. Quanta emoção! Completava-se a imaginação com a descrição do narrador. Hoje, não há locutores na transmissão televisiva, apenas comentaristas. São lerdos, narram o óbvio e, palpiteiros, com frequência esquecem o que se passa no campo e ficam a tecer considerações sobre o jogo com seus assistentes.

“Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma”, poetou Carlos Drummond de Andrade. Com toda a razão.


Fonte: caderno de cultura do jornal Estado de Minas - edição de 01/07/2010

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Passeio Socrático
Frei Betto


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir:

- "Qual dos dois modelos produz felicidade?"
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:

- "Não foi à aula?"

Ela respondeu: - "Não, tenho aula à tarde". Comemorei:

- "Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde".

- "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã..."

- "Que tanta coisa?", perguntei.

- "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada.

Fiquei pensando: - "Que pena, a Daniela não disse: "Tenho aula de meditação!"

Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! - Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: "Como estava o defunto?". "Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!" Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais…

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é "entretenimento"; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.

Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!"O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno.... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's…

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus olhares espantados, explico: Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz


Sobre o Autor
Frei Beto : Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, escritor e assessor de movimentos sociais, é autor de "Típicos Tipos" (A Girafa), prêmio Jabuti 2005, entre outros livros.

2 comentários:

  1. Eu fui lendo e, ansiosa pelo fim, quase roí uma unha. Bem na hora em que ele fala sobre virar o desejo para dentro. Caiu como uma luva esse texto. E Frei Beto! Obrigada por compartilhar!

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  2. Demais, né, não? É um prazer compatilhar. Bjos.

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