Não me parece coincidência que em meio aos estudos sobre o 'trágico' e no exercício de definir o futebol como a 'experiência trágica' do espectador brasileiro, eu me depare com a leitura de
Nietzsche sobre o nascimento (e morte) da tragédia clássica justamente no momento em que o
Esporte Clube Bahia dá seus últimos sinais de vida.
Já são quase duas décadas de decadência vertiginosa.
E morre, com o
Esporte Clube Bahia, não apenas um time, mas o sentido do futebol.
Não é por acaso que em determinado momento da pesquisa, optei por falar do futebol no Século XX, propondo-me a analisá-lo até o final do século em questão, posto que esta virada tem feito do futebol algo muito longe daquilo pelo qual me apaixonei e sobre o qual decidi pesquisar academicamente.
A morte do Bahia vem sendo anunciada desde que presidência, equipe técnica e - sobretudo - jogadores não demonstram nenhuma, mas eu digo absolutamente nenhuma relação de afeto ou tradição com o time. Talvez o filme
Bahia Minha Vida, de Márcio Cavalcanti e equipe represente um ritual de despedida, um registro último do moribundo agonizante, lembrado por seus momentos de glória.
Também não me parece coincidência que tenho andado em voltas com o soneto 66 de Shakespeare, este homem de teatro popular, que fala justamente sobre morte. Nele, denuncia a vitória do déspota sobre a arte. Lamenta o triunfo absoluto do néscio.
Vamos começar combinando que a tal da festa de abertura teve um toque irrefutável de cafonice e que foi superestimada tanto na divulgação prévia, quanto na cobertura. Cantoras, jogadores históricos marcaram presença. Teve lá uma direção de arte, mas eu achei aquilo bem insosso, num sabe, para dizer pouco.
A briga de Ivete Sangalo e Cláudia Leite é constrangedora. (Bom, Cláudia Leite é constrangedora sempre, é bom que se diga. Além do mais, essa onda de ficar pongando no Bahia pra manter uma fama na qual só ela acredita, me irrita muito). Essa baboseira é, para mim, mais uma prova da morte do futebol.
Querem produzir um espetáculo onde espetáculo deveria haver. Tem coisa errada no palco certo.
Tava pronto o espetáculo do futebol, pra que mais?
O espetáculo que é do povo: morto!
Mais uma vez, vence a pá de cal, minando tudo que é vida.
O espetáculo nas mãos de consórcios, diretores, burgueses intoleráveis, mais uma vez triunfa sobre o espetáculo do povo.
Néscios!
BAHIA 1 X 5 VITÓRIA
A goleada de 5 X 1 hoje do Vitória sobre o Bahia já seria de doer se revelasse a incapacidade crônica do Bahia de exercitar o mínimo do que se pode chamar futebol.
Já seria uma dor profunda para qualquer torcedor, mas o que parece estar de fato acontecendo é muito pior, tão pior que faria da derrota pela incompetência técnica, um sonho!
O que se viu hoje em campo, na inauguração da
Nova Fonte Nova, foi o exercício total da individualização, particularização do rito coletivo
Nietzsche conclui que a morte da tragédia se deve à privatização do conflito que sai do herói trágico (que é coletivo) e passa para o herói dramático (que é individual) e também à racionalização de sua prática (bem como de seus princípios). Estes dois fatos desembocariam mais tarde no surgimento de nova forma de poesia dramática que é o drama moderno. Pois o mesmo parece estar acontecendo aqui com o futebol.
E eu, pasmada, assisto ao futebol imitar a tragédia mais uma vez.
Não apenas em sua origem ritual, como constatei no mestrado.
Não apenas no seu modo de se relacionar com o espectador, como tenho feito no doutorado.
Mas (e esta dedução é fresquinha) assisto, desolada, à semelhança em sua agonia e morte.
Se coube à dupla
Sócrates e
Eurípedes, segundo Nietzsche a morte da tragédia através de sua transformação em drama individualista, cabe à dupla
dinheiro e
fama a morte anunciada do futebol, transformado em drama mercantil.
JORGINHO X SOUSA
Digo isso, porque o que se vê na mídia agora, desde a vergonhosa derrota, é que o 'resultado' teria sido entregue pelo grupo de jogadores que, em defesa do amigo Sousa, contra o técnico Jorginho, teriam produzido, deliberadamente, a lamentável performance.
É de se imaginar que mesmo que o time fosse o pior time do mundo, numa situação dessas: um clássico, re-inauguração da Fonte Nova, templo sagrado do Bahia, depois da trágica (e uso o termo com consciência) morte de sete fiéis torcedores que morreram no exercício de sua paixão, mesmo o pior time do mundo não teria tomado de 5 X 1 e não teria feito uma partida apática, vergonhosa e lamentável como se viu nesse fatídico 7 de Abril. É, o número sete parece rondar a história do Bahia!
O que me espanta são as proporções que pode tomar o individualismo desses jogadores, para mim inescrupulosos (reconhecidamente parceiros de farra do atacante protagonista do conflito com o técnico Jorginho, que acaba de sucumbir, por conta do resultado.) Usar um jogo deste pra derrubar um técnico é um desrespeito à torcida.
Eles são capazes de jogar no lixo o amor incondicional de torcedores que pagaram quase cem reais por um ingresso (porque para estes torcedores a re-inauguração do templo, o clássico, isso faz algum, ou melhor, isso faz todo o sentido da vida);
E jogam no lixo não apenas o amor do torcedor tricolor. Não. Jogaram no lixo o sentido do clássico baiano.
Não se iluda caro torcedor rubro-negro, esse clássico foi uma farsa.
O passeio do Vitória sobre o Bahia não tem nada de jogo de futebol no sentido pleno de sua acepção, mas tem tudo de jogo de egos, de disputa e exercício do poder.
Ora, que relação têm esses jogadores com a história do Bahia e mesmo da Bahia?
Que diferença vai fazer pra qualquer um deles amanhã ter feito parte dessa derrota?
Quiseram mostrar - e mostraram - que neste mercado, eles é que mandam e isso até poderia ser bom. De fato, faz sentido o jogador ser o dono do jogo, como o ator é o dono do espetáculo.
Mas aqui, exerceram o nobre poder a partir de interesses próprios e escusos.
Jogaram na privada (e deram descarga) a nossa história, o nosso
BA X VI repito, e não apenas o Esporte Clube Bahia.
Montaram uma queda de braços, onde só se queria ver futebol.
Mostraram que em nome de interesses particulares, jogam areia no brinquedo de meninos apaixonados pelo time.
O que muda na vida do jogador que esteve nessa partida daqui há alguns meses? Nada. Pra ele não vai fazer diferença nenhuma estar na lista esquecida do escrete que tomou a porrada. A diretoria? Não tá nem aí. O técnico, tem sua carreira pra cuidar.
O único elemento que ainda identifica o time, o único, solitário, abandonado e humilhado, é o
torcedor. Ah, esse, como sofreu e sofre, dia-após-dia com o câncer que dilacera seu time, seu futebol.
Os jogadores vêm e vão e até já faz parte da dramaturgia do futebol do século XXI a satisfação que é para um jogador, tendo saído de um clube recentemente, se reencontrar como este mesmo time e ser seu cruel algoz, metendo-lhe na rede a bola fatal.
Não há mais no jogador a relação de paixão com o time. Pelés, Manés, Zicos e Bobôs? Esqueça!
Forasteiros quase todos os jogadores do Bahia, fico imaginando esses
não-baianos comentando longe das câmeras sobre o que é o futebol baiano e o quanto aguardam para sair dele.
Pobres coitados. Nós e eles.
Matam o futebol.
O futebol que poderiam deixar de herança para filhos e netos, vai morrer em suas mãos.
Mas, que culpa têm também esses pobres coitados?
Incapazes de uma reflexão crítica sobre a própria profissão que exercem, deslumbrados com dinheiro e fama, entregam nas mãos do mercado aquilo que de maior valor tinham em mãos e matam o futebol com punhaladas de dólar e holofotes enquanto o torcedor se esvai de tristeza.
O que se desenha para o futuro, meu atual pessimismo não me deixa vislumbrar.
Há ainda muito para que o defunto se deite,é certo.
Muita coisa estranha, feia e nojenta ainda vai ser feita em nome do futebol.
A FORÇA DA GRANA QUE ERGUE E DESTRÓI COISAS BELAS.
Muito o torcedor ainda vai se enganar até que a morte oficial seja decretada, até que a humanidade se reconstrua em sua subjetividade e uma vez mais encontre uma nova forma de confrontar-se com sua natureza humana na experiência trágica.
Nem sempre houve tragédia.
Ela nasceu e morreu.
Nem sempre houve futebol.
Ele nasceu e agoniza.
Que sigam, como parte da mesma desgraça, o
riso rubro-negro e o choro tricolor.
Como as máscaras do Teatro, as duas manifestações fazem parte de uma mesma cena.
Duro para mim, como torcedora, como atriz, como pesquisadora, é estar viva para ver essa trágica anti-tragédia.
É bolada, torcedor!