No futebol é antiga uma questão que intriga e provoca polêmica, protestos e manifestações. É a situação dos jogadores de futebol em relação a sua
profissionalização e seus direitos trabalhistas, envolvendo, sobretudo a questão do passe do jogador. Escravidão ou passe livre?
A Lei Pelé (9615/98) tenta resolver de alguma forma este impasse, tornando o jogador dono do próprio passe, mas não avança em termos de direitos do trabalhador. Usado como um eficaz instrumento do jogo - como a bola ou a trave - o jogador é sugado ao máximo, enriquece diretores de clubes e empresários e quase sempre, acaba na miséria e no esquecimento.
Na arte-educação, não é diferente. Olha lá se não é pior. Explico já o aparente exagero.
Sem espaço nas instituições públicas, que rarissimamente abrem concursos para a área de artes - seja em nível de ensino básico ou superior - este profissional vive de pratinho na mão pedindo uma esmolinha numa ong aqui, uma ajudinha num projeto ali, uma vaguinha numa escolinha de bairro que não vai lhe assinar carteira. Nas escolas públicas, as aulas de arte são ministradas por professores de religião, português, filosofia e - pasmem - até de matemática. O critério? O professor que precisa de horas, pega as aulas de artes. Dá pra levar a sério um país desse? Alô LDB!
E as ogns, essas bem intencionadas instituições que querem salvar o mundo com arte-educação e cidadania. Pois bem. Começassem respeitando aqueles que estão na ponta, na sala de aula, no dia a dia! Como salvar criancinhas, adolescentes e jovens de um mundo brutal e cruel se este modelo de mundo é reproduzido dentro da própria instituição? Quero esclarecer que falo aqui das ongs que vem de "cima" e querem ajudar os coitadinhos de "baixo", movimentando um dinheiro considerável disponibilizado para salvar o mundo. Retiro deste saco, ongs nascidas das comunidades, geridas e coordenadas por ela, a exemplo da Casa do Sol Pe. Luiz Lintner e Beje-Eró, para citar apenas algumas. Mas, avancemos.
Diretos humanos são a cachaça da vez. Toda ong fala neles, cita seus artigos a torto e a direito, como dizem os mais velhos. E lá, na bendita declaração tá escrito:
Artigo 24: Todo o homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Ongs e projetos especiais do governo (seja ele de que instância for) não assinam carteira, não garatem direitos, raras vezes oferecem benefícios e claramente infrigem a Consolidação das Leis Trabalhistas. Geralmente argumentam que o contrato de prestação de serviço não está ligado à CLT, mas no dia-a-dia o que somos é exatamente isso: trabalhadores.
Educador de ong é aquele que apela por um emprego, sujeitando-se às mais impensadas e humilhantes situações. Quando consegue uma vaga, é frequentemente lembrado que o "mercado" vai mal e que ele deveria muito era agradecer a oportunidade de estar ali. Quando o salário atrasa, é convidado a pensar como 'ong' e assim entender que as condições de trabalho são outras. É convidado a pagar de seu próprio bolso, transporte, alimentação e todos os juros das contas pagas em atraso, porque o recurso não saiu.
Fim de ano para educador de ong é um tormento. Sem estabilidade, sem 13º, sem férias, sem ao menos os salários de janeiro e fevereiro, este profissional tem verdadeiro pavor de virada de ano, pois já sabe que é tempo de vacas magras. Ao fim do projeto, em novembro ou dezembro, recebe um muito obrigado do gestor, a promessa de que talvez no ano que vem ele seja chamado novamente. Ah, mas lembre-se que para o projeto ser renovado, a gente vai precisar daquele relatório, com lindas fotos e um número de inscritos, não de concluintes... quem tá na prática sabe do que eu tô falando!
E lá se vai todo vínculo, levando com ele qualquer possibilidade de respeito, direitos e cidadania! E todos esses
"temas transversais" tornam-se
"temas proibidos". Das bizarras reuniões pedagógicas onde se distribuem textos sobre educação humanista à realidade dos fatos, as coisas mudam completamente de figura. Carteira assinada? FGTS? Seguro Desemprego? Licença maternidade? Plano de Saúde? Fala sério! Conquista de mais de 50 anos da classe trabalhadora, são ainda um sonho,uma proposta de futuro para arte-educadores... e jogadores de futebol!
Ok. O que fazer, então?
A democracia corintiana
(movimento surgido na década de 80 no Corinthians, liderado por um grupo de futebolistas politizados: Sócrates , Wladimir, Casagrande e Zenon que constituiu o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro e foi um período da história do clube onde as decisões importantes, tais como contratações, regras da concentração, entre outros, eram decididas pelo voto, sendo assim uma forma de autogestão - EU AMO WIKIPEDIA!), trouxe ao futebol brasileiro uma possibilidade de algo improvável, mas que se tornou possível porque alguém ousou falar, refletir e propor mudanças. E olha que era época de ditadura militar. Desenhou-se no futebol um modelo sonhado para a vida real.
Considero que o movimento é forçar a barra dentro das instituições e projetos para que a nossa realidade pare de contradizer o nosso discurso dentro da sala de aula. Precisamos fazer de fato o que estamos ensinando na teoria. Paulo Freire já nos alertou que educação exige coerência. E se a gestão das ongs não está preocupada com isso, é preciso fazer com que se preocupe, senão por uma questão conceitual e ideológica, que seja porque isso virou para eles um problema. É preciso uma postura política. Sempre! As lutas e articulações políticas de classe tendem a ser esvaziadas e consideradas ineficazes, ultrapassadas e até ridículas. Mas isso é uma ação deliberada. Somos levados a crer que nada tem jeito, que nada adianta. É MENTIRA!
O que querem é que fiquemos parados, calados, isolados e intimidados. Assim, somos presas fáceis. Temos medo e vergonha de nos posicionarmos, de perguntar, de exigir direitos, informações.
Somos tratados como objetos dos projetos. Como a gaveta ou o grampeador, o arte-educador não faz parte das propostas nem das soluções. Pode até achar que faz, mas no fundo, não faz não. É preciso bater na mesa, chutar o balde, meter o pé na porta. Chega de sermos a "bucha de branco" do dominó do terceiro setor. Se vc está com problemas desse tipo e tem parceiros que querem lutar, fortaleça sua luta. Atue no coletivo. Não enfraqueça a luta de quem tem coragem de começar! A gente é maior do que imagina, me contou Augusto Boal. Seu colega de profissão é um aliado, não um concorrente. Ou a gente se enxerga como um todo e pára de lutar pela moedinha no fundo do prato, ou jamais seremos donos do nosso próprio passe. Jamais teremos mando de campo. Jamais seremos a bola da vez.
É bolada, arte-educador!